
Enquanto estudante da Licenciatura em História na Universidade Aberta, tenho tido a oportunidade de aprofundar temas fascinantes que muitas vezes não recebem a devida atenção no nosso quotidiano. Uma dessas oportunidades surgiu na unidade curricular de História de Portugal Medieval, onde fui desafiada a refletir sobre a convivência e as tensões entre cristãos, judeus e muçulmanos no espaço urbano português durante a Idade Média.
O ensaio que partilho foi elaborado no âmbito da avaliação contínua e teve como base o artigo de Maria Filomena Lopes de Barros, Judeus e muçulmanos no espaço urbano: inclusões, exclusões e interações, incluído na obra Inclusão e Exclusão na Europa Urbana Medieval. A proposta consistia em ir além do resumo do artigo, articulando de forma original as ideias apresentadas com os conhecimentos adquiridos ao longo do semestre.
A reflexão foca-se nas dinâmicas de inclusão, exclusão e interação das minorias religiosas na sociedade portuguesa medieval, procurando demonstrar como o quotidiano urbano frequentemente contrariava as imposições legais e revelava práticas de convivência mais complexas e entrelaçadas.
Este trabalho foi avaliado positivamente, o que me motivou a partilhá-lo aqui no blog como parte do meu percurso académico e pessoal. Espero que esta leitura possa inspirar outras pessoas a (re)descobrir a riqueza da nossa História e as múltiplas camadas da sociedade medieval portuguesa.
A sociedade Medieval Portuguesa
“A sociedade medieval portuguesa foi marcada pela convivência entre cristãos, judeus e muçulmanos, uma convivência longe de ser linear. Entre o reconhecimento inicial e a exclusão final, desenrolaram-se dinâmicas complexas que desafiaram as leis oficiais. Este ensaio propõe uma reflexão crítica sobre a inclusão, exclusão e interação das minorias religiosas, mostrando como o quotidiano muitas vezes contrariava a norma legal.
Num primeiro momento, o poder régio promoveu a inclusão de judeus e muçulmanos através da criação de comunas, estruturas com alguma autonomia jurídica e política. Os muçulmanos beneficiaram de cartas de foral desde o século XII (Barros, 2019), enquanto os judeus, embora sem documentos equivalentes, estavam desde cedo integrados na vida administrativa e económica. Estas comunas permitiam às minorias negociar com os concelhos e preservar práticas culturais e religiosas.
Contudo, a partir do século XIV surgem políticas de exclusão, nomeadamente as leis canónicas e os decretos régios. Medidas como a imposição de sinais distintivos no vestuário ou a obrigatoriedade de residirem em bairros separados (judiarias no caso dos judeus e mourarias, no caso dos muçulmanos), estas visavam reforçar a separação. Em 1496, culmina este processo com a expulsão ou conversão forçada de judeus e muçulmanos pelo rei D. Manuel I (Barros, 2019). Mesmo quando D. Manuel I decretou a expulsão dos judeus em 1496, por pressão dos Reis Católicos de Espanha, não pretendia abdicar da riqueza económica e intelectual que essa comunidade representava para o reino. A conversão foi, por isso, encarada pelo monarca como uma solução estratégica (Voss, 2017). Este facto reforça a tensão que existia entre a lei e a realidade, melhor dizendo, uma forma de contornar a lei.
Ainda sobre isto, note-se que esta viragem política face aos judeus não começou com D. Manuel I, mas foi preparada desde o reinado de D. Duarte (1433-1438). Segundo Martins (2006, p.121), “foi o início da viragem da situação dos judeus portugueses que, com D. Duarte (1433-1438), assistiram à progressiva deterioração do seu “estado de graça”, em grande medida por via da proteção real”. No entanto, esta mudança não foi imediata, tendo-se concretizado de forma lenta e faseada, o que revela uma clara relutância em romper com a tradição de convivência e tolerância que caracterizavam os séculos anteriores. Um exemplo dessa convivência excecional encontra-se no reinado de D. João I, quando o rabi-mor integrava o conselho do rei, e mesmo antes disso, no tempo de D. Fernando, havia judeus que ocupavam cargos de grande relevância, como o de responsável pelas finanças do reino. Estes factos contrastam com a realidade do norte da Europa da mesma época, onde judeus eram perseguidos e expulsos, e evidenciam o papel central que algumas figuras judaicas desempenhavam na administração régia portuguesa (Revista Tema Livre, 2021).
Apesar das restrições legais, o dia-a-dia urbano medieval português era pautado por relações de dependência e colaboração. Cidades como Loulé mostram exemplos de reuniões concelhias que incluíam explicitamente mouros e judeus, participando ativamente na vida política local. A nível económico, muitos concelhos solicitavam artesãos judeus e muçulmanos para suprir carências de mão-de-obra qualificada. Mesmo no plano mais pessoal, registos de cartas de perdão revelam casos de relações amorosas entre membros das diferentes comunidades, e até filhos em comum, indicando uma prática social que nem sempre obedecia à norma legal (Tavares, 1982).
Em conclusão, a articulação entre leis, práticas e vivências urbanas revela um cenário de entrelaçamento constante entre cristãos, judeus e muçulmanos. As tentativas de separação impostas pelo poder político e religioso não anularam as relações interpessoais, económicas e políticas do dia-a-dia. Tudo isto leva-nos a reconhecer a diversidade da realidade medieval e a repensar narrativas históricas demasiado lineares. O conceito de “entrelaçamento”, proposto por Barros (2019), ajuda-nos a perceber que não se tratava apenas de uma justaposição de grupos, mas de um verdadeiro cruzamento de práticas e vivências, sobretudo nos centros urbanos onde a colaboração era inevitável.
Outro aspeto que importa realçar, é que Barros (2019) chama a atenção para a assimetria na preservação da memória histórica. A maior parte da documentação disponível foi produzida pelas autoridades cristãs, o que condiciona a forma como conhecemos as vivências das minorias. As vozes judaicas e muçulmanas, escritas em hebraico ou árabe, são muito mais raras e, por isso, menos presentes na construção historiográfica. A falta de documentos dessas minorias obriga-nos a analisar as fontes com atenção. Em suma, também precisamos considerar que há lacunas na história.
Referências Bibliográficas
Barros, M. F. L. (2019). Judeus e muçulmanos no espaço urbano: inclusões, exclusões e interações, in inclusão e exclusões e exclusão na Europa urbana Medieval, 87-112
Martins, J. (2006). Portugal e os judeus (Vol. I). Documenta Histórica.
Revista Tema Livre. (2021, Maio 21). Portugal Medieval: o caso dos judeus e muçulmanos na península Ibérica. Convidada Filomena Barros (Vídeo). YouTube.https://www.youtube.com/watch?v=ctmmd3k3ZcA.
Tavares, M. J. (1982). Os Judeus em Portugal no séc. XV. Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Voss, R. R. (2017). O massacre de Lisboa de 1506 e o discurso de ódio antijudaico. Revista de História das Ideias, 35, 305-333.”


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