E a literacia histórica, que lugar ocupa hoje?

Este texto nasceu de um trabalho académico desenvolvido no âmbito da unidade curricular de História Digital, no meu percurso na Universidade Aberta. Nele, fui convidada a refletir sobre um tema cada vez mais urgente: a circulação de conteúdos históricos falsos na internet, muitas vezes apelativos, virais e sem qualquer compromisso com o rigor científico.

Vivemos num tempo em que a desinformação circula com facilidade e rapidez — e isso também atinge a história. Há quem negue factos comprovados, distorça acontecimentos e partilhe imagens manipuladas para sustentar narrativas ideológicas. Esta realidade levou-me a aprofundar o conceito de fake history, a compreender os seus impactos e, sobretudo, a explorar formas de combater este fenómeno.

O trabalho que partilho a seguir propõe não só uma análise crítica dessa desinformação, como também aponta caminhos possíveis: promover a literacia histórica, comunicar melhor a ciência histórica e dar voz aos historiadores no espaço digital.

Num tempo em que tanto se fala de literacia financeira, importa também perguntar: e a literacia histórica, que lugar ocupa hoje?

🔽 Segue abaixo o texto completo do trabalho:

“A circulação de conteúdos históricos falsos na internet constitui um dos desafios da sociedade digital nos dias de hoje. A facilidade de publicação, o alcance alargado das redes sociais, e a ausência de filtros críticos fazem da web um terreno fértil para a manipulação da memória coletiva. Neste contexto, emerge o conceito de fake history, desenvolvido por Jason Steinhauer (2021), que designa a utilização do passado em narrativas desprovidas de rigor ciêntifico e frequentemente subordinadas a agendas políticas e ideológicas. Este trabalho visa, para além de identificar as diferentes formas de conteúdos históricos falsos na rede e os seus objetivos, também se pretende discutir diferentes estratégias eficazes para combater essa desinformação e por último será analisado um caso concreto de fake history.

A presença de narrativas distorcidas do passado na internet assume múltiplas formas: a negação de fatos históricos amplamente comprovados (como o Holocausto) ou a glorificação de regimes autoritários, como o Estado Novo Português ou a Ditadura Militar Brasileira. A estes exemplos podemos juntar a disseminação de imagens descontextualizadas, vídeos manipulados ou memes que veiculam ideias historicamente erradas de forma apelativa e viral (Souza & Duarte, 2021). Segundo Eiroa (2018), este fenómeno é ampliado pela própria natureza das fontes digitais: efémeras, fragmentadas, multimodais e facilmente replicáveis, o que desafia a aplicação da crítica documental tradicional.

Rafael Souza (2017) destaca que a web 2.0 trouxe consigo não apenas novos meios de comunicação, mas também novos autores da história. Hoje, pessoas sem formação específica e com objetivos diversos (sejam eles informativos, comerciais ou ideológicos), produzem conteúdos sobre o passado que atingem milhões de visualizações. O perfil @HistoryInPics, analisado por Steinhauer (2021), é exemplo de como as fotografias sem curadoria crítica podem consolidar mitos históricos, como a montagem de John Lennon com Che Guevara. A ilusão de autenticidade conferida pela estética apelativa reforça na audiência desses perfis perceções erradas do passado.

O combate à fake history passa necessariamente por uma estratégia multidimensional. Em primeiro lugar, é fundamental desenvolver a literacia histórica entre os cidadãos, conceito que Steinhauer (2021) aproxima da competência crítica em informação: a capacidade de avaliar fontes, distinguir fatos de opiniões, e interpretar o passado com base em evidências. Esta competência deve ser fomentada desde os primeiros ciclos de escolaridade e consolidada ao longo da vida, como ferramenta essencial de cidadania. Além disso é preciso uma política de comunicação proativa, onde os historiadores assumam o papel de mediadores públicos da história, aproximando a produção académica dos públicos que não são especializados. Formar comunicadores históricos é uma resposta à fragmentação informativa e à disputa de narrativas online. É também importante que as instituições académicas reconheçam e valorizem estes esforços.

Também Rafael Souza (2017) explora a importância da criação de conteúdos académicos em formatos acessíveis, como os canais “Leitura Obrigahistória” e “Cantinho da História” no Youtube. Estes exemplos mostram que é possível comunicar temas de história complexos com responsabilidade, mantendo o rigor, mas recorrendo a estratégias visuais narrativas e de proximidade com o público.

O caso concreto que aqui trago para analisar é a narrativa que afirma que o nazismo foi um movimento de esquerda. Apesar do consenso historiográfico que identifica o nazismo como uma ideologia de extrema-direita, racista e anti-comunista, esta narrativa distorcida tem sido amplamente difundida nas redes sociais, em vídeos do Youtube e discursos políticos. Souza e Duarte (2021) identificam esta ideia como um exemplo claro de desinformação histórica com motivação ideológica, que procura manipular o entendimento público do passado para fins políticos do presente. Steinhauer (2021) reforça que a difusão deste tipo de fake history é particularmente perigosa por recorrer à retórica de autoridade histórica e à linguagem visual da internet para legitimar estas narrativas falsas. A sua circulação na web reforça a urgência de promover a literacia histórica e a capacidade de reconhecer interpretações rigorosas face a discursos distorcidos.

Em conclusão, o historiador dos dias de hoje, enfrenta diversos desafios, como o de fazer circular o saber histórico na esfera pública digital. A fake history deve ser enfrentada com literacia histórica, com ferramentas digitais e com compromisso cívico. Como defende Eiroa (2018), é necessário formar uma nova geração de historiadores capazes de agir num universo marcado pela fragmentação e múltiplas vozes sem abdicar do rigor, da crítica e da responsabilidade cultural. Num tempo em que tanto se fala de literacia financeira, importa também perguntar: e a literacia histórica, que lugar ocupa hoje?

Referências Bibliográficas

Eiroa, M. (2018). O passado no presente: o conhecimento historiográfico nas fontes digitais. Ayer, 110(2), 83–109.

Malerba, J. (2017). Os historiadores e os seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História, 37(74), 135–154. https://doi.org/10.1590/1806-93472017v37n74-06

Souza, R. J. (2017, Julho). História na Web 2.0 – Democratização do conhecimento e divulgação científica. Simpósio Nacional de História da ANPUH, Brasil.

Souza, R. F., & Duarte, R. A. (2021). Sobre fake news e fake History. Revista Mídia e Cotidiano, 15(3), 321–338.

Steinhauer, J. (2021). Of fake news and fake history. Foreign Policy Research Institute. https://www.fpri.org/article/2017/06/fake-news-fake-history/

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