
No dia 27 de maio de 2025, tive a oportunidade de estar presente no Cinema da Trindade, no Porto, para assistir à estreia oficial do documentário “2000 Crianças Judias Raptadas”. A sala estava cheia de convidados e o ambiente era de expectativa e respeito. Tratava-se de um evento promovido pela Comunidade Judaica do Porto, em parceria com a Hispanic Jewish Foundation de Madrid — duas instituições que têm feito um trabalho notável na preservação e divulgação da história judaica em território ibérico.
O filme, com cerca de 30 minutos, trouxe à luz um episódio pouco conhecido e quase totalmente ausente dos nossos currículos escolares: o rapto de cerca de 2000 crianças judias em 1493, por ordem do rei D. João II, e o seu envio para a então inóspita ilha de São Tomé. Estas crianças, separadas à força dos pais e batizadas contra a sua vontade, foram utilizadas como parte de uma estratégia de “engenharia populacional”, para povoar a ilha africana, situada a mais de 7000 km de Lisboa.
A produção impressiona pela sua qualidade cinematográfica e rigor histórico. O realizador Luís Ismael destacou as dificuldades técnicas envolvidas — desde a construção parcial de uma nau quinhentista à logística exigente de filmar com centenas de crianças — e partilhou, emocionado, o peso emocional de dar corpo a uma história tão dolorosa. O jovem ator Rodrigo Costa, que interpretou Jacob, deixou a sala em silêncio quando declarou: “Estou muito triste. O filme não foi ficção. Aquilo aconteceu mesmo.”
Após a exibição, seguiu-se um debate com a presença do historiador César Santos Silva que nos brindou com sábias palavras, representantes da comunidade judaica e da embaixada de Israel. Michael Rothwell, diretor dos museus Judaico e do Holocausto do Porto, contextualizou a profunda ligação histórica entre os judeus portugueses e espanhóis, vítimas de perseguições paralelas nos dois reinos e que, mais tarde, partilharam os mesmos destinos na diáspora.
Este episódio em particular, embora cruel, não foi isolado. A historiadora Susana Mateus recorda que estas crianças eram, na sua maioria, filhas de famílias que tinham fugido de Castela e Aragão após o édito de expulsão de 1492. A entrada em Portugal foi permitida por D. João II, mediante o pagamento de uma quantia, mas com um prazo de permanência restrito. Quando esse prazo expirou, o rei decretou o envio destas crianças para São Tomé, acompanhadas por escravos e degredados. Apesar da brutalidade da decisão, muitos pais ensinaram os filhos a manter a sua fé, e alguns traços da tradição judaica sobreviveram e misturaram-se na cultura crioula da ilha por séculos.
O documentário mostra-nos como a memória pode ser resgatada do silêncio — e porque isso é tão necessário. Num momento em que o antissemitismo volta a ganhar força em vários cantos do mundo, recordar estas histórias não é um simples ato de memória: é um gesto de resistência.
Ser judeu, ao longo da História, tem sido sinónimo de enfrentar o exílio, a perseguição, a tentativa constante de apagamento. Perseguem-nos porque existimos, porque resistimos, porque a nossa identidade não é facilmente moldável. A tragédia de 1493, com crianças levadas para longe, sem volta, ecoa até hoje. Tal como afirmou o representante da embaixada de Israel, a linguagem simbólica “atirar as crianças aos animais” ainda ressoa em expressões populares, como lembrança do horror.
Fui assistir a este filme como cidadã, como portuguesa e como alguém que acredita na importância de uma memória ativa. Saí comovida e perturbada. Porque a História não nos pertence apenas quando nos engrandece — pertence-nos também quando nos envergonha. E é nesse confronto que podemos crescer, como povo e como humanidade.
Para ver o filme:

Deixe um comentário